A Democracia é, realmente, um aprender constante, um exercício de paciência e um eterno aprendizado de ouvir e de engolir sapos. Depois de quatro anos de fascismo explícito, com as garras e os dentes do obscurantismo cravados na alma dos brasileiros, conseguimos uma vitória que parecia impossível, o retorno de um projeto mais humanista.
Imagine o que é vencer um Presidente da República sentado no Poder, com um cofre sem fundo, com um Congresso cooptado, coordenando uma máquina criminosa de fake news , sem escrúpulos e com apelos golpistas. A vitória se deu, em boa parte, pela memória do povo brasileiro das conquistas dos governos Lula. A incorporação de 36 milhões de brasileiros ao mercado de consumo, com a mudança da classe social, a retirada do país do mapa da fome, o prestígio internacional e o enfrentamento sério das grandes crises deixaram um lastro que levou à derrota do fascismo.
Não tenho dúvida que só o Lula, e ele próprio assume, poderia capitalizar tudo isso e derrotar Bolsonaro. É claro que foram também às urnas a vontade de homenagear os 300 mil mortos pela desídia e pela irresponsabilidade sádica no combate à pandemia e tantos outros gritos presos na garganta.
Ocorre que, em circunstâncias como essas, ganhar exige muito. O leque para enfrentar a barbárie tem que ser amplo. E foi! Tinha que ser. No momento de compor o Governo, aconteceu aquilo que seria normal: esse grupo foi ampliado ainda mais e de maneira preocupante. O poder atrai e muitos políticos estão sempre dispostos a serem atraídos. Ávidos. Por gravitação. Fascinados pelo poder e sempre prestes a trair. A foto do primeiro time de ministros, com alguns novos democratas, se mostrada antes das eleições, daria um certo constrangimento. Mas era o que precisava ser feito. Para derrotar o fascismo, valeu.
Agora, começou a parte mais dolorosa: governar. Os que viraram democratas, pouco antes, ou logo após as eleições, não querem só um naco do poder: querem que Lula e seu grupo abdiquem de governar! Que não ousem colocar na pauta do Executivo e do Congresso as propostas que fizeram Lula, no que é essencial, chegar outra vez ao Poder. Que não tentem, vociferam os eternos governistas, fazer uma gestão com preocupações sociais e humanistas. Todas as propostas que deram alguma unidade orgânica ao Lula e aos mais próximos a ele parecem que queimam violentamente os objetivos, muitas vezes não republicanos, da direita empedernida.
A pergunta que não quer calar é simples: se não for para implementar as propostas mais importantes que nos trouxeram até aqui, de que valeu ganhar? Para, usando o prestígio da esquerda e do pensamento humanista, fazer um governo de direita e golpista? Ora, derrotamos o fascismo nas urnas e agora vamos derrotar o atraso no governo. Ou não terá valido a pena. É conhecida a frase atribuída a José Sarney, “governo é como violino: você toma com a esquerda e toca com a direita”. Está na hora de um governo, no mínimo, ambidestro.
Remeto-me a Pessoa, no “Livro do Desassossego”:
“Tornamo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente.”