MUNDO
Opinião: a esquerda e as bandeiras do Hamas
Publicado
3 meses atrásem
Por
oestenewsPor Bruno Bimbi*
A faca do assassino é pequena para o pescoço de um ser humano; ele precisa percorrer seu diâmetro com paciência, como com um abridor de latas. Quando a cabeça se separa do corpo da vítima, o carniceiro a levanta e a exibe como troféu. Em outra casa, talvez a poucos metros, usaram uma enxada, mas depois de bater várias vezes no corpo estendido no chão, não conseguiram decapitar. “Vem cá, filma, este é o primeiro judeu que eu vou matar”, diz o assassino e, quando acaba: “Allahu Akbar!”.
O filme de terror está entre as evidências coletadas pelas Forças de Defesa de Israel depois de 7 de outubro , quando o Hamas executou o maior massacre de judeus por serem judeus desde o Holocausto nazista. Das mais de 200 horas de gravação (imagens de trânsito; da segurança dos kibutzim e das casas; das câmeras corporais dos terroristas e de muitos celulares), foram extraídos 47 minutos que já foram exibidos para jornalistas, autoridades de vários países e outras pessoas, inclusive no Brasil. Quando assisti, numa base militar em Israel, eu me perguntava como um ser humano podia ser capaz de fazer aquilo. Foi difícil não chorar, gritar, vomitar. Ainda mais do que a carnificina, me chocou a felicidade dos terroristas : eles matam famílias inteiras e depois cantam, festejam e agradecem a Alá. Ligam para os pais e contam quantos judeus mataram, orgulhosos.
No kibutz Nir Oz, entrei em casas de famílias assassinadas ou sequestradas e vi as manchas de sangue, as marcas de tiros, mas também vestígios da vida anterior: uma bicicleta de criança na porta, um livro, o carrinho do bebê Kfir Bibas –– ainda sequestrado.
Pouco depois, já de volta em São Paulo, vi ativistas de esquerda desfilando com bandeiras dos autores daquele horror: o grupo terrorista Hamas. Militei a vida inteira na esquerda e hoje me pergunto, assustado: o que essas pessoas têm a ver comigo? Quando fui à manifestação dos familiares de reféns, ainda em Tel Aviv, ao ver as mães que marchavam com as fotos dos filhos sequestrados, eu, que nasci na Argentina, não parava de pensar nas Mães da Praça de Maio. Como pode tanta gente de esquerda levantar a bandeira dos sequestradores?
O filme do massacre não é público. Para assistir, é preciso deixar os celulares e se comprometer a não revelar a identidade das vítimas. Faz sentido, por respeito à dor das famílias, que não querem essas imagens na internet, mas… será que, diante daquela barbárie e do negacionismo, não seria melhor liberar as imagens? Se você vai marchar com bandeiras do Hamas, saiba o que está defendendo!
Entre as vítimas dos monstros glorificados na Av. Paulista estavam as duas pessoas decapitadas em frente às câmeras. Estavam os jovens cujos corpos ficaram amontoados num refúgio antiaéreo, perto da Festa Nova, onde o brasileiro Rafael Zimerman passou cinco horas se fingindo de morto, entre cadáveres. Estavam os que foram caçados a tiros nas ruas, como num videogame, e os queimados vivos dentro de casa, do carro, da ambulância. Estavam as mulheres estupradas e uma avó de 84 anos sequestrada em cadeira de rodas. Estavam, também, duas crianças que viram o pai ser atingido por uma granada e morrer na sua frente, tentando protegê-los.
Eu lembro dessas imagens e fico sem ar! Com o pai morto, enquanto os meninos choravam aterrorizados num canto da cozinha (um deles tinha perdido um olho), um dos terroristas abriu a geladeira, pegou uma garrafa e perguntou para eles, como se nada tivesse acontecido: “É água?”.
Hamas
Talvez os que levaram suas bandeiras na capital paulista não saibam que o Hamas, além de matar judeus, também mata palestinos; que são fundamentalistas religiosos, misóginos e homofóbicos; que chegaram ao poder em 2007 por um golpe de Estado, mataram seus adversários políticos (palestinos) e instauraram uma ditadura militar ainda pior do que a brasileira de 1964. Talvez não saibam que o Hezbollah é financiado pelo regime iraniano (que encarcera mulheres por não usar véu e enforca gays na praça pública) e, além de atacar com foguetes e drones a população civil do norte de Israel, explodiu em 1994 um centro comunitário judaico em Buenos Aires (a AMIA), matando 85 pessoas e ferindo centenas.
Um dos manifestantes da Paulista levava um RPG-7 de brinquedo no ombro. Vocês sabem o que é isso? Serve para lançar foguetes contra cidades israelenses. Em maio do ano passado, um desses foguetes, lançado desde Gaza, atingiu um prédio muito perto da casa de um amigo meu, em Rehovot, destruiu um apartamento e matou uma senhora de 82 anos.
A deriva antissemita da esquerda ocidental é assustadora. Não falo das legítimas críticas a Netanyahu e seu governo –– muitos israelenses também não gostam dele, vide as multitudinárias manifestações pedindo sua demissão e as pesquisas que mostram que hoje perderia as eleições ––, mas da inacreditável simpatia pelo fundamentalismo islâmico e do uso sistemático de mentiras e clichês antissemitas disfarçados de “críticas a Israel”.
Banalizar o Holocausto, chamar a boicotar empresas de judeus, exigir o rompimento dos acordos de cooperação acadêmica da USP com a Universidade Hebraica de Jerusalém, comparar israelenses a ratos, divulgar notícias falsas para demonizar o Estado judeu e usar a palavra ‘sionismo’ como xingamento não é uma “crítica”. É outra coisa.
Dizia Lênin em 1917 que “apenas as pessoas totalmente ignorantes ou embrutecidas podem acreditar nas mentiras e calúnias disseminadas contra os judeus”, mas não há fake news e teoria da conspiração sobre Israel, o sionismo e os judeus que não seja compartilhada nos grupos de WhatsApp de esquerda, como os microchips nas vacinas e o falso “kit gay” nos grupos de extrema direita. Tudo acompanhado por discursos de ódio, do mesmo tipo que nós da esquerda sempre criticamos. Quando se trata do conflito israelo-palestino, muitos companheiros parecem agir sob os efeitos da cloroquina.
Como vamos enfrentar os preconceitos, as mentiras e os discursos de ódio da extrema direita ––pergunto eu, como ativista de esquerda –– se ao mesmo tempo naturalizamos os próprios?
É sério, precisamos conversar.
* Bruno Bimbi é jornalista, escritor, ativista LGBT, doutor em Estudos da Linguagem (PUC-Rio) e autor dos livros “Casamento igualitário” e “O fim do armário”, publicados pela Garamond. Foi membro da executiva estadual do PSOL-RJ. É gerente de Estratégia e Política da StandWithUs Brasil.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal iG
Fonte: Internacional