Certas imagens transformam-se em símbolos de determinada época. Lembro-me de estar em Moscou, em 1994, quando houve uma tentativa de golpe e havia a proibição de visitar o túmulo do Lenin — exposto à visitação em um Mausoléu na Praça Vermelha. Eu queria muito ir vê-lo. A foto dele, com um cavanhaque branco, me impressionava. Estava na casa de um amigo, bebendo vodka e comendo caviar — a verdadeira “esquerda caviar ” —, quando uma menina russa avisou que havia acabado de escutar no rádio sobre a reabertura das visitas naquele momento. Fui tomar um banho e, ao me olhar no espelho, resolvi transformar minha barba em um cavanhaque, em homenagem ao Lenin. Nunca tinha usado cavanhaque, nunca mais deixei de usar.
Da mesma forma, a minha geração saiu às ruas contra a Ditadura militar usando camisetas com aquele retrato inconfundível do Che Guevara. No futebol, a imagem mágica do Pelé socando o ar, logo após o gol contra a Tchecoslováquia na Copa do Mundo de 1970, acompanhou os amantes do esporte. E a foto da Marilyn Monroe, tendo seu vestido levantado por um vento numa grade de ventilação no metrô de Nova York, em 1954, fez muito adolescente suspirar, remetendo-nos ao glamour de Hollywood. Também nos instiga a ilustração do Einstein com a língua para fora, como a debochar da burrice alheia.
Talvez, uma das imagens que mais representou a paz mundial seja aquela de um homem nunca identificado, em 1989, parando os tanques quando do massacre em plena Praça da Paz Celestial em Pequim. A força daquela cena fala mais do que mil discursos na ONU. Assim como a tristeza da menina correndo, toda queimada pelas bombas americanas em 1972, no Vietnã, que ficou conhecida como “Garota Napalm”, fez-nos reforçar e consolidar a aversão pelos horrores da guerra. Uma imagem que é um soco no estômago de todos.
Por outro lado, a foto do beijo de um soldado em uma enfermeira, em plena Times Square, no dia do fim da Segunda Guerra, abraça-nos e nos acolhe. Recentemente, as fotografias de mulheres trans no presídio de Pinheiros — feitas com muita sensibilidade por um juiz fotógrafo que resultou no belo livro “Translúcida” — denunciam o preconceito e o inferno da vida das presas. Mas as fotos libertam. No Brasil recente, a cena do Lula nos braços do povo sendo levado nos ombros por uma multidão, quando saiu da cadeia, em Curitiba, é um hino da resistência e da liberdade, tal qual a já histórica e emocionante foto da posse do povo, que abriu este ano de 2023.
Em compensação, vai se desenhando uma personificação do ridículo e do vulgar quando falamos de Bolsonaro e seu bando. A declaração do filho mais novo, no sentido de que, durante a pandemia, foi o período em que “ele mais pegou gente”, de modo a acompanhar os passos do pai, que admitiu usar a verba do auxílio moradia da Câmara para “comer gente”, ajuda a dar o contorno do que ficará como representação daquele tempo. Enquanto milhares de pessoas morriam de covid, boa parte pela ação criminosa do governo, o filho seguia o instinto do pai.
A imagem do período bolsonarista é a mais pura definição do horror, do machismo e da vulgarização da vida. Vai ser difícil ter apenas uma foto como símbolo desse momento. Pode ser a de milhares de covas abertas, ou a dele desdenhando da dor dos que perderam entes queridos e bradando que não era coveiro ou imitando grotescamente uma morte por asfixia. São muitas as hipóteses de atrocidades. Mas acredito que o retrato que ficará ainda não foi feito. Será o desse genocida entrando na prisão após a condenação em um processo penal democrático e com todos os direitos assegurados. Essa cena deverá ser o símbolo da época bolsonarista.
“Hoje é, simplesmente, impossível dizer, ‘eu não sabia’: fotografias nos tiraram o álibi da ignorância.” Susie Linfield, teórica social e cultural na Universidade de Nova York