Não ser compreendido quando está com fome, não saber dizer à professora de que precisa ir ao banheiro, de que tem sede, de que está com dor, de que não está bem, ou simplesmente, de que precisa de ajuda. A narrativa traz apenas um recorte daquilo que é vivido no dia a dia por crianças migrantes, originárias em sua maioria da Venezuela, Colômbia, Bolívia, Chile, Argentina, Haiti, Suriname, Guiana Inglesa, Peru, Paraguai, Uruguai e Japão. Mas o quadro pode se tornar ainda mais duro, quando o peso do racismo cultural e do não pertencimento passam a construir memórias de dor no inconsciente dessas crianças.
Na última sexta-feira (30.08), a presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, desembargadora Clarice Claudino da Silva, acompanhada do conselheiro e coordenador do Comitê Gestor da Justiça Restaurativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), desembargador Alexandre Cunha, conheceram o trabalho humanitário de inclusão e acolhimento realizado com alunos da Escola Municipal Manuel Corrêa Almeida, de Várzea Grande, a partir da aplicação dos Círculos de Construção de Paz. As atividades contaram com a participação de 20 alunos migrantes com idade entre 11 e 15 anos que participaram do círculo de aprendizagem conduzido pelas facilitadoras Dora Maritza Mayurel Urquiola e Marlene Silva Rodrigues.
O município de Várzea Grande, em parceria com o Poder Judiciário, realizou no primeiro semestre deste ano a formação de mais de 100 profissionais da rede municipal de educação, em facilitadores de círculos de construção de paz. Trabalhados como estratégia de inclusão, os círculos são responsáveis, hoje, pelo atendimento de mais de 500 alunos migrantes, com idade entre 02 e 16 anos.
Para além de promover a integração socioemocional dos alunos, o trabalho contribui de forma significativa para a construção de ambientes seguros, para a reconexão de vínculos de confiança e para a cura de traumas causados, por exemplo, até a chegada ao Brasil.
De nacionalidade venezuelana, a professora Dora Maritza Mayurel Urquiola, afirma que os círculos de paz são centelhas capazes de criar espaços para processos de cura e transformação dentro do ambiente escolar. Facilitadora de círculos de paz, Dora é professora da Educação Infantil com especialização em Grafo-Coaching em Diversidade de Aprendizagens e Direitos Humanos, e trabalha na Superintendência Pedagógica de Várzea Grande, como coordenadora de Inclusão dos Povos Migratórios.
“Os círculos tornaram muito mais fácil o processo de acolhimento das crianças, e para que elas se sintam integradas e se reconheçam como parte da comunidade. Tudo isso facilita quando elas [crianças] precisam falar da sua necessidade como estudante, mas também das suas necessidades enquanto criança. Elas precisam saber como se desenvolver dentro de uma sociedade, saber falar sobre seus hábitos e costumes, sobre a hora de comer, de brincar, saber que elas também têm direitos e deveres, e que precisam cumprir. A cultura é completamente diferente, nossos hábitos e costumes são completamente diferentes, e não estou falando apenas da língua, estou falando de hábitos e costumes de alimentação, de transporte público, e tudo isso precisa ser ensinado, para que em seu cotidiano, saibam como fazer e se desenvolver, sem se sentirem como estranhos, sem que se percam na rua, por exemplo. É muito triste estar em um país sem saber o que fazer para que possa ser compreendido”, refletiu Dora, que neste dia, fez dupla com a professora Marlene Rodrigues, especializada em Educação Especial e designada para atuar na Vara Especializada da Infância e Juventude de Várzea Grande.
Essa nova forma de diálogo trazida pelos círculos, que, na verdade é bastante antiga, assegura a partir da horizontalidade, onde todos são iguais, a oportunidade de contar e analisar a sua própria história, em suas próprias palavras, e ouvir as histórias dos demais participantes, como um ritual para construção de laços de igualdade e superação de diferenças.
Na visão da presidente do Tribunal de Justiça e presidente do Núcleo Gestor da Justiça Restaurativa (Nugjur), desembargadora Clarice Claudino, a potência dos círculos de construção de paz não está limitada a fronteiras, nacionalidades ou mesmo a um idioma, e pode inclusive ser considerada como uma linguagem universal, quando aplicada verdadeiramente com amor, respeito e empatia.
“O que nós temos aqui é uma surpresa potente de se ver, porque isso confirma tudo aquilo que nós sempre falamos a respeito dos círculos e da potência que eles têm e da estrutura que podem alcançar quando encontram pessoas que aderem 100% a metodologia, e então, esse sentimento vai permeando todos os cantos, como água que se joga em terra na busca por diferentes formas de penetrar. E é assim que a Justiça Restaurativa tem se mostrado aqui em Várzea Grande, com o detalhe de que a estratégia utilizada aqui foi de fazer a sensibilização e a formação a partir de um grupo de gestores, e isso nos mostra, que quando as pessoas estão prontas, nós somos meros instrumento para que isso tome os caminhos que tem que tomar, afinal de contas, o bem e a paz também se aprende. Tenho certeza de que o conselheiro do CNJ sai de Mato Grosso bastante surpreso com a concretude e a perenidade daquilo que tem sido feito ao longo dos anos, por todos nós”, comemorou a presidente.
O fortalecimento do convívio saudável em comunidade é, com certeza, o ponto forte entre os inúmeros resultados promovidos pelos círculos de paz, avalia o conselheiro do CNJ, desembargador Alexandre Cunha.
“Nós ouvimos muito falar sobre esse movimento da Justiça Restaurativa que acontece em Mato Grosso, mas quando a gente chega e sente aquilo que vem sendo feito aqui, só então percebemos como esse programa que é silencioso e construído com muito carinho, é um programa que já se colocou de maneira sustentável no Estado, e que apresenta resultados impressionantes, dentro de uma rede em que o Poder Judiciário consegue estar junto dos municípios e da sociedade civil, num processo de construção permanente. O que vemos aqui é uma realidade já muito bem consolidada e que serve de exemplo para o Brasil, e como referência para avançarmos em outros lugares, como uma fonte de inspiração. Estamos falando de um trabalho preventivo, em que o Judiciário se coloca junto da sociedade, atuando na formação de uma comunidade mais saudável e menos conflituosa”, categorizou o conselheiro.
“O Tribunal de Justiça está desenvolvendo uma verdadeira política de Justiça Restaurativa, a partir do próprio Tribunal e envolvendo as comarcas, a partir dos juízes e servidores, mas com a construção da Justiça Restaurativa convidando toda a sociedade a participar, e essa é exatamente a essência da Justiça Restaurativa, é um convite a transformar a lógica de convivência e superar paradigmas do individualismo, do utilitarismo, do consumismo e da exclusão que fomentam a competição, para passarmos a construir uma convivência pautada pelo diálogo, a tolerância, pelo atendimento de necessidades, pela reparação de danos, pelas responsabilidades individuais e coletivas, e por fim, por uma convivência pautada pela cooperação e pelo cuidado”, afirmou o juiz auxiliar da presidência do CNJ e membro do Comitê da Justiça Restaurativa, Marcelo Nalesso Salmaso.
Também participaram da visita ao projeto, o juiz auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça de Mato Grosso e coordenador do Núcleo Gestor da Justiça Restaurativa (Nugjur), Túlio Duailibi Alves Souza, o juiz diretor do Fórum de Várzea Grande, Luís Otávio Pereira Marques, a juíza coordenadora do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) de Campo Verde, Maria Lúcia Prati, a diretora-geral do TJMT, Euzeni Paiva de Paula, o gestor-geral do Nugjur, Rauny Viana, a assessora de Relações Institucionais do Nugjur, Katiane Boschetti da Silveira, a primeira-dama de Várzea Grande e promotora de Justiça, Kika Dorilêo Baracat, o secretário municipal de Educação, Sílvio Fidélis, entre outros.
#Paratodosverem
Esta matéria possui recursos de texto alternativo para promover a inclusão das pessoas com deficiência visual. Primeira imagem: foto horizontal colorida do objeto de centro em destaque, a imagem de uma girafa de pelúcia rodeada por cartões que indicam os valores dentro do círculo de construção de paz. Segunda imagem: presidente do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, desembargadora Clarice Claudino, concede entrevista à TV JUS. Terceira imagem: professora e facilitadora de círculos de paz, Dora Maritza Mayurel Urquiola explica como é desenvolvido o projeto no município de Várzea Grande. Quarta imagem: conselheiro do Comitê Gestor da Justiça Restaurativa do Conselho Nacional de Justiça, desembargador Alexandre Cunha. Quinta imagem: juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça e membro do Comitê da Justiça Restaurativa, Marcelo Nalesso Salmaso.
Núcleo Gestor da Justiça Restaurativa – TJMT
Foto: Alair Ribeiro
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Fonte: Tribunal de Justiça de MT – MT