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Artigo: “Adaptação do espaço urbano às mudanças climáticas: o caso de Porto Alegre”

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Duda Almeida
Artigo: “Adaptação do espaço urbano às mudanças climáticas: o caso de Porto Alegre”

Atualmente, muito se fala sobre a catástrofe ocorrida no Sul do País . A sensação de tristeza e desolação diante do que temos visto é inevitável – são imagens fortes que nos atingem como seres humanos e profissionais.

As dimensões imensas e complexas dos danos na capital, Porto Alegre, e nas cidades do interior ainda são incertas do ponto de vista material, mas equivalem a desastres de proporções incalculáveis, como a devastação causada por grandes guerras em zonas urbanas. Neste momento pós-desastre, entram em cena personagens essenciais para pensar o problema, como profissionais voltados para a recuperação da infraestrutura urbana, engenheiros, gestores públicos, profissionais da saúde, urbanistas, pensadores e acadêmicos, refletindo em conjunto e agindo como equipe para tentar minimizar as possibilidades de ocorrência deste tipo de desastre no futuro em nossas cidades.

Porto Alegre é uma cidade simpática, de gente alegre e comunicativa – agradável para se andar, é uma cidade grande que não parece grande. A capital surgiu em meados do século XIX, entre o Lago Guaíba e uma topografia acentuada, concentrada inicialmente em sua margem norte. Posteriormente, alguns trechos foram aterrados para abrigar a expansão urbana e as atividades portuárias, importantes para a economia da área. A configuração do assentamento da cidade é uma malha xadrez, modelo adotado na implantação das cidades espanholas, embora tenha se adaptado à topografia e se moldado a ela, assim como fizeram as cidades portuguesas em seu início.

Para proteger o então povoado, foi construída uma muralha, demolida posteriormente ao fim da Guerra dos Farrapos, ocasião em que deu-se início à segunda etapa de expansão do núcleo urbano. Neste momento, a cidade ultrapassou as barreiras iniciais, com a população se espalhando por áreas mais distantes dos centros – os arraiais – sendo então construído o primeiro aterro para abrigar a ampliação do Porto. A cidade começou a prosperar, resultando em várias novas construções representativas que até hoje são importantes na cidade, como o Mercado Público e o Teatro São Pedro.

O terceiro período de expansão, após a Proclamação da República em 1889, é marcado pela intenção dos gestores públicos de investir na modernização da cidade, embasado pelas teorias de reforma urbana aplicadas em Paris pelo Plano Haussmann e pelas ideias positivistas – que pregavam o progresso por meio da ordem, inclusive urbana.

Em 1914, o primeiro Plano Diretor da Cidade, o Plano Geral de Melhoramentos, pregou, como era característico dos planos da época, que os espaços públicos da cidade deviam ser ordenados a partir de grandes intervenções e novas obras viárias. Desta época é a construção do Viaduto Otávio Rocha, o edifício do MARGS, Memorial do Rio Grande do Sul, Paço Municipal e Palácio Piratini. O Cais Mauá, da mesma época, foi implantado em um segundo aterro, desta vez de proporção maior.

Enfim, em 1943, um novo plano diretor foi elaborado, ainda sob impacto da grande enchente de 1941. Amplamente influenciado pelos ideais modernistas, este plano criou um zoneamento na cidade, definiu usos, regulamentou alturas e instituiu taxas de ocupação dos lotes privados. Este plano teve grande impacto na economia da cidade, pois não permitia a adaptação de antigos prédios a novos usos; e na vida do cidadão comum, pois restringia a caminhabilidade na cidade, através da criação de avenidas expressas e grandes viadutos. Desta época também são a execução de novos aterros, prevendo a expansão do tecido urbano rumo a um novo eixo, a zona oeste da cidade.

A história de Porto Alegre é importante. Assim como tantas cidades brasileiras, nasceu híbrida e sofreu com limitações de crescimento, problemas sociais, espraiamento, legislações incoerentes, falta de planejamento, desrespeito ao meio ambiente e crescimento desordenado. Agora, diante do sofrimento do povo gaúcho, testemunhamos a incrível capacidade de solidariedade e apoio que apenas os brasileiros sabem oferecer, tanto individualmente quanto coletivamente. Nesse momento de união, compreendemos o verdadeiro papel dos centros urbanos: facilitar soluções e assistência de forma eficiente e concentrada em áreas densamente povoadas. Como bem destacou Jaime Lerner, “a cidade é o último refúgio da solidariedade”. Os centros urbanos, com sua alta densidade populacional, podem ampliar o impacto dos desastres, mas também são fundamentais para a logística de fornecer ajuda de forma rápida e abrangente.

Infelizmente, Porto Alegre tem uma situação geográfica que acentuou o desastre: O Guaíba é o local de encontro de águas continentais de várias origens, que desaguam no rio Guaíba. Um “corredor azul” de pequenos afluentes fluviais, riachos, córregos e rios desaguam ali e receberam, excepcionalmente, um volume absurdo de águas pluviais, funcionando como afluentes que aumentaram, em série, o volume da água. Porto Alegre recebeu tanto as águas pluviais em um volume extraordinário quanto um corredor de águas fluviais acentuado, todos concentrados no Lago Guaíba.

Em termos de desafios, a reconstrução será penosa. A estimativa é que a conta chegará no mínimo a 90 bilhões de reais, segundo especialistas, e deve-se pensar prioritariamente em reconstruir estradas e vias para todos os modais de transporte, além da infraestrutura elétrica e de saneamento. Esta conta não incluitoda a infraestrutura urbana e exclui itens importantes como pavimentação de ruas, execução e recuperação de moradias e reconstrução de parques fabris, por exemplo. Considera-se que metade da infraestrutura do Estado está danificada e deverá ser reconstruída. Claro que o planejamento agora possui uma variável importantíssima que há tempos já deveria ter sido levada em conta: a resiliência às mudanças climáticas. Estabelecer prioridades será primordial, assim como organizar as ligações físicas entre as áreas que ficaram inundadas, isso como ação emergencial. Em seguida, União, Estados e Municípios, empresários e sociedade civil, todos devem determinar a destinação dos recursos alocados para a reconstrução. É uma tarefa monumental.

Teorias e diferentes técnicas dentro da ciência do desenho urbano para conter inundações existem há tempos. O conceito das “cidades-esponja”, por exemplo, vem sendo implantado como ferramenta para distribuir e drenar água, controlando áreas alagadiças das grandes cidades.

Trata-se de uma técnica desenvolvida por cientistas e urbanistas chineses, que virou política nacional na China em 2013, e é aplicada com sucesso, sendo aprimorada ao longo dos anos. Um dos principais responsáveis pelo conceito é o Arquiteto Paisagista Kongjian Yu, que é internacionalmente reconhecido por projetos voltados para enfrentar e prevenir inundações urbanas no contexto de mudanças climáticas aceleradas.

Kongjian Yu produziu um livro didático para milhares de prefeitos da China, que aplicam e defendem esta abordagem.

Para ele, a paisagem urbana deve ser um local onde cada gota de água deve ser coletada e reutilizada – pontualmente. Portanto, ao invés de desviar a água da chuva através de sistemas de drenagem, o recurso deve ser absorvido e reaproveitado – como uma esponja. Isso significa aplicar a gestão de águas pluviais de maneira sustentável e correta através da utilização de algumas infraestruturas e ferramentas para ajudar a absorver água, quebrando a dependência da rede de escoamento urbano. A água pode ser reutilizada em época de seca ou em momentos de alguma necessidade de um maior volume de água no sistema de reuso de águas da cidade. Ou seja, a cidade trabalha todo ciclo hidrográfico: a precipitação, a captação, a gestão da água na superfície do solo, a infiltração e a recarga do lençol freático.

A cidade esponja tem dimensão chamada “multi-escalar” – ou seja, o projeto é pensado em escalas, que vão desde a grande bacia hidrográfica – o rio – até as sub-bacias e “micro bacias”, terminando em unidades menores de drenagem que abarcam o detalhe do escoamento no segmento da rua e na escala individual, representado pelos lotes e casas.

O projeto deste tipo de sistema prevê a criação de parques alagáveis, praças-piscinas, hortas comunitárias, jardins de chuva, paredes e coberturas verdes, zonas úmidas, vias verdes, bio valas e grandes bolsões de vegetação instalados ao longo de rios e lagoas – é um projeto integrado. A pavimentação da cidade deve ser feita com materiais permeáveis que permitam que a água alcance os lençóis freáticos; áreas verdes são projetadas em locais estratégicos, de maneira a absorver a água das chuvas.

Além destas ações pontuais, todos esses elementos podem ser aliados ao sistema viário das cidades e a edifícios já construídos, formando uma grande malha que funciona de maneira complementar e assim cumprindo uma agenda coletiva social, pensada para que o fluxo natural da água siga um curso já planejado e previsto, no caso de um volume de chuva acima do esperado.

Até agora, 16 cidades-piloto foram selecionadas para fazer parte de um programa nacional na China, que prevê a implantação do sistema, o acompanhamento da performance e análises constantes de resultados. As cidades chinesas hoje são obrigadas a manter 30% da cidade como espaço verde. Outros 30% são dedicados ao espaço comunitário.

Outros locais no mundo já adotam estas ações: Nova Iorque criou um parque alagável, o Hunter Point South Park para acomodar volumes provenientes de grandes chuvas; Bangcoc criou o Parque Centenário da Universidade de Chulalongkorn, dotado de infraestrutura verde para mitigar questões ecológicas prejudiciais; a China implementou o Parque Qunli para alimentar com água captada das chuvas as fontes de água da região, que estavam secando; Medellin, na Colômbia, criou um sistema de corredores verdes para diminuir as consequências das ilhas de calor que castigavam a população – foram implantados, ao longo de 18 estradas e 12 hidrovias, parques verdes lineares que reduziram o excesso de concreto e asfalto.

A cidade dinamarquesa de Frederiksberg utiliza em suas praças um tipo de concreto permeável; Roterdã, na Holanda, construiu em 2013 a praça Benthemplein para capacitar a zona urbana com um sistema de armazenamento da água de chuva – este complexo, desenvolvido pelo escritório de arquitetura De Urbanisten, é composto por três bacias: duas delas são subterrâneas e armazenam a água sempre que chove. A terceira é uma quadra de esportes abaixo do nível da rua que enche quando a chuva persiste.

Qualquer iniciativa voltada para a revitalização da cidade de Porto Alegre inevitavelmente requer uma compreensão mais aprofundada de uma abordagem específica para o planejamento urbano. O planejamento tradicional tem sido predominantemente impulsionado pelo crescimento populacional e focado no desenvolvimento econômico. No entanto, é chegada a hora de assimilarmos uma importante lição: é a paisagem que deve guiar nossos passos. Isso implica em compreender, incentivar e valorizar as infraestruturas ecológógicas como a espinha dorsal do desenvolvimento urbano. Este conceito deve servir como a base, o ponto de partida para uma reconstrução significativa. Em um mundo onde a sustentabilidade ambiental não pode mais ser negligenciada, é imperativo abandonar visões urbanas que não integram essa questão de forma central.

Salvaguardar o processo ecológico integrando a rede de águas pluviais, pensando em áreas de inundação, conservação e biodiversidade é hoje um dos pilares mais importantes para se pensar o futuro das nossas cidades.

* Duda Almeida é arquiteta e urbanista especializada em Desenho de Arquitetura Assistido por Computador pela UnB, com curso em Gestão de Projetos pela FGV e Mestre na área de concentração Urbanismo – Cidade e Habitação. Atualmente é sócia-proprietária do escritório Reis Arquitetura aqui na capital, mas já atuou como docente nas áreas de Teoria e História e Projeto de Arquitetura e Urbanismo e está se aventurando como autora de livros, tendo lançado recentemente a obra Desenho Urbano e Envelhecimento Populacional

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Fonte: Nacional

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