MATO GROSSO

Adoção homoafetiva – disruptura do preconceito 13 anos depois de o STF reconhecer união homoafetiva

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“Quando fui me entendendo como homem gay, sabia que não iria ter uma esposa e para me tornar pai, não poderia ser da forma natural”. Em outubro de 2013, os irmãos Lorenzo, de quatro anos, e Victor Hugo, de quase um ano, deixaram a instituição que os abrigavam no município de Rondonópolis–MT, para conhecerem, pela primeira vez, um lar. Local onde encontraram respeito, amor e segurança, ao lado de seus pais, o juiz Wagner Plaza, autor da frase que abre esta matéria, e o advogado Fábio Bazotti.
 
O casal, ao conhecerem as crianças, foi tomado por um vínculo instantâneo. “Na hora que os vi, senti que eram os meus filhos. Foi um sentimento que não dá para explicar. Naquela mesma noite, o Lourenço perguntou se ele podia me chamar de pai. Nossa, foi um dos momentos mais incríveis da minha vida”, recorda Wagner Plaza, que atua como juiz no 2º Juizado Especial de Rondonópolis.
 
O caminho da adoção, escolhido pelo casal, ocorreu em um período em que a adoção homoafetiva dava seus primeiros passos no Brasil. O reconhecimento da união homoafetiva como um núcleo familiar, aconteceu em maio de 2011. Em uma decisão histórica, de forma unânime, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres.
 
O ato da corte suprema deu início a um processo de transformação no sistema de adoção no país. As novas regras influenciaram histórias de famílias como a de Wagner Plaza e Fábio Bazotti, dois homens que coincidentemente lidam diariamente com Direito, e consequentemente promoveram mudanças que resultaram em benefícios para toda comunidade LGBTQIA+.
 
Responsável pela 2ª Vara Especializada de Família e Sucessões de Várzea Grande e integrante da Comissão Estadual Judiciária de Adoção do Estado de Mato Grosso (CEJA-MT), a juíza Christiane da Costa Marques Neves, explica um pouco sobre o ato de adoção.
 
“A adoção, assim como a maternidade e a paternidade biológicas, traz consigo desafios únicos, mas também um dos presentes mais preciosos que a vida pode oferecer: o amor incondicional. Aqueles que optam por esse caminho muitas vezes enfrentam obstáculos, superam barreiras e, ao final, descobrem que a recompensa é o afeto mais puro e transformador. Na CEJA, acreditamos profundamente no poder desse amor, capaz não apenas de mudar as vidas dos filhos, mas também de transformar o mundo ao nosso redor, tornando-o um lugar mais humano e compassivo”.
 
Da iniciativa que partiu do STF, nasceram leis e suas regulamentações, até se chegar, em setembro de 2024, ao número de 2.497 pretendentes homoafetivos disponíveis para adoção, conforme dado do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA). Desde a criação desse sistema, 2019, até setembro de 2024, um total de 1.909 crianças, entre zero a 17 anos, já foram adotadas por casais homossexuais, no país.
 
As mudanças também garantiram justiça social para milhares de famílias homoafetivas. Um exemplo está no Estado de Mato Grosso. Dois meses após a adoção de Lorenzo e Víctor, já em 2014, a Perícia Oficial e Identificação Técnica do Estado de Mato Grosso (Politec) passou a permitir, em sistema de identificação Civil, a inclusão de até quatro nomes de pais.
 
“Somos o primeiro casal homoafetivo a conseguir registrar as crianças em Mato Grosso”, afirma o juiz Wagner Plaza. A conquista partiu de uma provocação do casal, enquanto tentavam fazer as identidades das crianças. “A Politec não conseguia fazer os documentos, porque o sistema só permitia a inclusão dos nomes de mãe e pai. Isso acontecia porque, infelizmente, temos no Brasil uma absurda quantidade de crianças sem pai, mas todas têm mãe. Então o sistema da Politec não permitia fazer a identidade dos meninos, com dois pais”.
 
Após peregrinar de instituições a instituições para conseguir os documentos dos filhos, veio a conquista. Uma mudança foi feita no sistema e os dois meninos conseguiram ter suas certidões e identidades de direito.
 
A preocupação mais recente dos pais é com a emissão do passaporte. “Para fazer o CPF deles, na Receita Federal, tivemos que colocar um de nós como mãe, porque o sistema da federal, obrigatoriamente, pede para colocar o nome da mãe. Agora, não sabemos como será para tirar o passaporte deles”, conta o Wagner.
 
No papel de magistrada que lida diariamente com causas que podem implicar vida de crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos ou abandono, Christiane Costa Marques, fala com orgulho sobre a família de Wagner Plaza e Fábio Bazotti, especialmente, pelo que eles representam.
 
“A trajetória dessa família é um exemplo vivo do que acreditamos: a adoção não apenas transforma as vidas das crianças, mas também enriquece a sociedade em sua totalidade, ao constituir famílias que, com suas experiências e valores, contribuem para um mundo mais justo e solidário. Exemplos como o do meu colega de magistratura, Wagner nos enchem de esperança e reafirmam nossa crença de que o amor é o verdadeiro laço que une uma família. Sou grata e sinto-me emocionada em presenciar uma história inspiradora, que creio que tocará e incentivará muitos outros a seguir por esse caminho”.
 
Vínculo espontâneo – Ao mesmo tempo, em que Wagner, Fábio, Lorenzo e Victor se reconheciam como família, em outubro de 2013, o casal teve a certeza de que no processo da adoção o vínculo entre pais e filhos é genuíno. Assim como uma mãe e um pai biológico não escolhem o filho, os pretendentes a adoção, também não.
 
Advogado e acadêmico em Biomedicina, Fábio Bazotti, recorda do processo até a decisão pela adoção. “Demorou um pouco para decidirmos a questão da adoção. Eu sempre tive a vontade de acompanhar todas as fases de uma criança: a primeira cólica do bebê, os primeiros passos. Queria vivenciar todos esses momentos. O Wagner, pela questão da magistratura que o fez presenciar a realidade de várias de família, ele via o lado das crianças mais velhas, que dificilmente eram adotadas. Demorou um tempo para chegarmos a um consenso”.
 
Além do impasse pela idade da criança, o casal também se preocupava com o risco de preconceito. O receio de uma criança, já fragilizada pela rejeição ou maus-tratos, pudesse ser alvo de discriminação por ser adotada por um casal de homens gays, era inadmissível.
 
“Temos uma dura realidade no Brasil, no sistema e na mentalidade das pessoas, mas o que planejamos não foi o que Deus colocou na nossa vida. Queríamos uma menina, com até três anos, porque uma coisa que nos preocupava era, dentro do possível, que a nossa condição de homossexuais não implicasse em mais dor a essa criança, então surgiu dois meninos negros”, conta Wagner Plaza.
 
“Deus encaminha tudo certo. Ele coloca você no momento certo, com as pessoas certas e a chegada das crianças foi assim, uma bênção muito grande. Um sentimento que nos engrandece como ser humanos e principalmente como responsáveis” relembra Fábio.
Convívio em Família
 
A convivência familiar acrescentou seus desafios naturais e necessários para o desenvolvimento de uma criança. Impor limites, estabelecer regras, cobrar as tarefas escolares fazem parte da rotina de Lorenzo e Victor, que hoje estão com 15 e 12 anos.
 
Desse cuidado, nasceu a inspiração e a admiração pelos dois pais, que Lorenzo relata com carinho. “Meus pais são as pessoas que eu mais amo nessa vida, porque eles que me deram o amor e o carinho. Amo ficar com eles nossos momentos de família. Eu sinto que estou em um lugar seguro”.
 
O jovem busca como referência características dos dois pais, que, segundo ele, são incríveis. “O pai Fábio eu admiro muito a dedicação e organização dele. Ele consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo, e tudo fica bom, além de cozinhar muito bem. O pai Wagner eu admiro a justiça, além de ser juiz, ele é justo com tudo. Mesmo quando falo alguma coisa que pode ser errada, ele consegue avaliar se é preciso castigar ou não”. O ‘castigo’, pelo qual Lorenzo se refere, é ficar sem videogame.
 
Tímido e um pouco chateado por estar sem jogar videogame, por tirar notas baixas na escola, Victor Hugo resumiu as qualidades dos pais como “pessoas boas, gentis, educadas, justas. Tem hora que eles são bravos, mas sei que isso é para educar. Eles são ótimos para mim”. Ao mesmo tempo, ele confessa a admiração que tem pela nova qualificação do pai Fábio, acadêmico de Biomedicina, e faz planos. “Eu quero ser jogador de futebol ou médico de osso, porque acho muito legal o como é formado dentro da gente”.
 
Adoção genuína – Os relatos das duas crianças apenas comprovam o que secretária-geral da CEJA Elaine Zorgetti Pereira presencia diariamente. “No caso de crianças maiores que conseguem se manifestar, falamos da intenção de casal homoafetivo em adotá-las e perguntamos se gostariam de conhecer. E a resposta é sim! Eu quero”.
 
Assim como qualquer começo, as diferenças de personalidade e histórias exigem dedicação e aprendizado das duas partes. Mas há um momento que simboliza um marco na convivência. “Quando sai a sentença de adoção e os pais chegam e mostram para eles, dizendo ‘olha sou seu pai ou mãe’, isso passa uma segurança àquela criança”, Finaliza Elaine Zorgetti.
 
A psicóloga Aretuza e Vanessa de Deus, uma das responsáveis pelo Programa Padrinhos, regulamentado no estado de Mato Grosso por meio da Instrução Normativa n. 08/2024/CGJ, recorda um pouco do que viveu quando atuava diretamente com casos de adoção na vara da infância.
 
“Dependeram da faixa etária, dependeram do histórico de vida, algumas crianças cresciam nas instituições, quase todas que estavam ali, passavam por um processo até serem destituídas de suas famílias, para aí serem colocadas na adoção. Então a rejeição seria um sentimento que atingia todas”, recorda Aretuza de Deus.
 
Por outro lado, os pretendentes a adoção iniciam os processos traçando um perfil da criança que queriam. Um procedimento padrão que faz parte do próprio sistema de cadastro https://adocao.tjmt.jus.br/ O que acontecia no final do processo era surpreendente, como explica a psicóloga.
 
“É uma emoção muito grande, muitos casais ficam muito tempo à espera da criança ideal. Por mais que tenha um esboço de um perfil, é no momento que eles vão à instituição e apresentado a uma criança, que os eles desmontam tudo aquilo que idealizou. O perfil descrito no início é meramente burocrático”.
 
Com mais de dez anos de atuação na CEJA, a psicóloga observou que a adoção, homoafetiva ou não, marcam um recomeço àqueles que esperam. E o preconceito é uma barreira já frágil, diante das conquistas que vieram em forma de leis, protocolos e pelas próprias crianças.
 
“As crianças elas encaram muito bem, inclusive, percebo que crianças que passam por essa experiência de uma adoção homoafetiva ou num apadrinhamento homoafetivo, são crianças que ficam mais abertas para entender diversidade. Tornam-se crianças mais empáticas”, conclui Aretuza de Deus.
 
#Paratodosverem. Esta matéria possui recursos de texto alternativo para inclusão das pessoas com deficiência visual. Descrição da imagem: foto horizontal mostra quatro pessoas, dois adultos e duas crianças, com dois animais de estimação.  Foto 2: a juíza Christiane está em destaque na foto. Ela é uma mulher de pele clara cabelos ondulados. Ela veste um terno rosa sobre uma camisa branca. Foto 3: em primeiro plano está o juiz Wagner Plaza. Ele é um homem branco, cabelos pretos, usa barba e está vestido com uma camisa azul clara.  Foto 4: em primeiro plano está o advogado Fábio Bazotti, ele é um homem branco e sorri para foto. Usa uma blusa de camisa azul clara de manga longa e está sentado em uma banqueta. 
 
Priscilla Silva
Coordenação de Comunicação Social do TJMT
imprensa@tjmt.jus.br
 

Fonte: Tribunal de Justiça de MT – MT

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